março 20, 2006

O que fica do tempo que passa - Lobby da crónica grava-se em livro

Útil se deverá considerar o costume instalado (e em 1990 definitivamente consolidado) na nossa actividade editorial, de reunir e lançar em livro as crónicas que analistas e observadores vão publicando na imprensa semanal. (*)

Desaparecida que foi (praticamente) a reportagem, dos nossos diários e semanários, por motivos certamente inadiáveis, e substituída, com vantagem, por correspondentes de guerra nos sítios nevrálgicos da retaguarda da mesma, reina incontestado o «lobby da crónica» que atravessa, decisivamente, a sua época doirada, desde que as ramalhais farpas e os gatos de garra afiada de Fialho deixaram marca no jornalismo português de circunstância. E não só pela reconhecida capacidade dos cronistas mas porque, no dia seguinte à publicação em efémera folha de jornal, a posteridade já está ganha com a sua republicação em livro, não vá perder-se pitada de tão precioso maná. A que algumas fontes fidedignas chamam «adrenalina».

Outra vantagem ainda: quase nunca ou nunca os ilustres cronistas são jornalistas de profissão, permitindo-se, portanto, cultivar um estilo próprio e uma especialidade temática - a política - vedada, por motivos ético-deontológicos, ao jornalista de carteira, que deve ser independente de partidos. E não deve ter opinião. Ao contrário do jornalista topa-a-tudo, sempre na roda viva do «flash» e consumindo-se na efemeridade da «prosa para todo o serviço», o cronista político pode, na calma do seu gabinete e no remanso da sua especialidade, acabar por mostrar que, apesar da opção confessional, é bom em alguma coisa.

Aleluia, pois, vivam os cronistas de imprensa publicados em livro, para maior glória das letras e comodidade de consulta do utente. Verificar hoje, à velocidade a que marcha a história, quem tinha ou não tinha razão antes do tempo, é um dos raros prazeres a que se pode dar o cidadão leitor. Metade da política, como se sabe, é feita de exercícios de futurologia, em concorrência desenfreada com a astrologia premonitória, e o livro, permitindo estudos cronológicos e comparativos extremamente elucidativos, não deixa esquecer quem acertou rotundamente ou quem redondamente errou a pontaria.

Embora a actualidade seja quase tão traiçoeira como a língua portuguesa - como lembra o Herman José- , e tenha o terrível defeito de se desactualizar, particularmente nestes dias em que o mapa político muda todas as noites (de fronteiras, em sentido lato), é prático, barato e dá milhões ter na nossa estante, à disposição da nossa mórbida curiosidade, as opiniões datadas dos principais «fabricantes de opinião», chamados também, na gíria, «analistas». Ou «profetas», conforme a religião.

SEARA FÉRTIL

O ano de 1990 foi, nessa seara, de uma incrível fertilidade. Um dos mais significativos é sem dúvida, o livro de Leonardo Ferraz de Carvalho, que no seu «bunker» do suplemento de economia de «O Independente», funciona de verdadeiro barómetro dos altos e baixos do anticavaquismo primário, fogo que tem contagiado praticamente todo o doutrinador político que se preza. Verdadeiro barómetro da ideologia liberal aplicada à praxis portuguesa, - tal como a Bolsa é barómetro da economia mundial de mercado - brilhante nas posições que defende, na estrita e exclusiva perspectiva empresarial, Leonardo Ferraz de Carvalho honra o nome de família que ilustra.

Um livro a não perder para quem queira guiar-se na floresta de enganos das ideologias pós perestroika. Defina-se o autor de «1992» como «a vantagem de ser sincero», quase tão grande vantagem - segundo Wilde - como a de se chamar Ernesto.

Fica agora claro a todos o que só era conhecido dos mais atentos e perspicazes: de L.F.C. parte em grande parte a «orientação» ideológica que tem estruturado e dado um sentido coerente às campanhas dos vários «lobbies» corporativistas remanescentes contra Cavaco: mais do que Paulo Portas, mais do que Helena Sanches Osório ou Miguel Esteves Cardoso, a orientação ideológica que tem marcado as intensivas campanhas de «anticavaquismo primário» recebem a sua principal inspiração de Leonardo Ferraz de Carvalho, como se pode comprovar agora pela sequência de leitura que o livro permite. A não perder, por quem não quer perder eleições.

Logo a seguir se deverá citar um dos pilares da nossa democracia de linhagem monárquica, MEC, sigla que é só por si um programa, uma ideologia, um «lobby». Miguel Esteves Cardoso, que também se deixou cartonar e republicou em livro «As (suas) Aventuras na República Portuguesa», podia ser retratado à la minuta por esta frase do prefácio (pg 10):

«As pessoas adoram um gozão, um malcriado, um aventureiro. É o que eu sou. Estas crónicas provam-no.»

Miguel Esteves Cardoso, com efeito, cujo poder de influenciar a opinião de toda uma nascente geração é tão arrasador como um bombardeamento sobre Bagdad - e ainda o seu ardoroso amor à paz não se tinha revelado -, já não oferece dúvidas a ninguém. Estado dentro do Estado, ele é só por si um «lobby» de opinião, tanto mais sedutor quanto mais piada têm as suas prosas. De tal forma, que nem Edite Estrela seria capaz de notar quantas vezes, em cada linha, o verbo «ser» aparece em cada crónica do MEC. Às vezes nota-se.

E porque não há dois sem três, Vasco Pulido Valente reaparece também em livro, «Às Avessas», completando a (santíssima) troika de «opinion makers» que metem a efemeridade do jornal num chinelo para galgar a imortalidade do livro. Com uma inapagável vantagem: o panorama da sua coerência ideológica, irremediavelmente e inapagavelmente gravado.

Faltam agora, em livro, as crónicas de Paulo Portas, para que tudo esteja perfeito e o consulado cavaquista possa ser lido do avesso, dentro de alguns anos, através dos textos que mais e melhor o promoveram.

O DISCRETO CHARME DA HISTÓRIA

Posição do socialismo avançado, com um pé ancorado na história romana (?), é testemunhado por Nuno Brederode Santos, cujas crónicas acabam de sair em edição da Relógio d'Água.

Nuno Brederode Santos chamou «Rumor Civil» ao conjunto de textos publicadas no semanário «Expresso» (só dois saíram na revista «Grande Reportagem»), testemunhando, em «Nota de Abertura», a sua posição, que é de total desprezo por tudo o que «ainda mexe» neste Vietname chamado Portugal.

Demasiado histórico, por vezes, no sentido (do) passado, o estilo indubitavelmente pitoresco de Brederode Santos cria-lhe uma corte de fieis leitores e justifica uma atenta observação à sua atenta observação dos factos políticos.

Espécie de reserva intelectual da Nação, sempre a jogar fora do ring, sem se comprometer com a mediocridade deste reino medíocre, Brederode brilha, único, no panorama da nossa intelliggentzia, mas então uma lacuna se assinala e já que falamos de gloriosos descobrimentos portugueses: para quando em livro as crónicas de Mega Ferreira, voz imprescindível em 1998, caso ainda haja país, planeta e comemorações nessa remota data.

ÍNDICE REMISSIVO JÁ

Para que esta recolha de textos conjunturais tenha o seu máximo aproveitamento por parte do leitor atento, recomenda-se às editoras uma pequena grande inovação - o índice remissivo - nos próximos volumes que vão com certeza seguir-se com novos e antológicos florilégios dos nossos cronistas. O índice remissivo de temas e autores é um complemento que já não se dispensa neste tipo de livros que, permitindo arquivar o que se perderia em jornais e, consequentemente, uma maior comodidade de consulta, devem sistematizar essa função. Quando o estilo «personalizado» do cronista já não é motivo de procura, fica a utilitária função de nele encontrar as referências informativas aos nomes e acontecimentos da actualidade.

  • (*) Vasco Pulido Valente, «Às Avessas», Ed. Assírio & Alvim
  • Miguel Esteves Cardoso, «As Minhas Aventuras na República Portuguesa», Ed. Assírio & Alvim
  • Leonardo Ferraz de Carvalho, «1992», Ed «O Independente»
  • Nuno Brederode Santos. «Rumor Civil», Ed. Relógio d'Agua