maio 02, 2006

Silvério e a Rosa

Silvério acordou naquele dia com um sorriso nos lábios. Tudo estava vibrante, até mesmo aquela manteiga rançosa parecia agora deliciosa como nunca. O sol tinha um brilho especial, estava com um tom alaranjado forte. O ferro de passar estava a todo vapor, afinal ele estava saindo para encontrar aquela que já significava mais do que tudo de valor que ele possuía, era seu grande amor. Foram tantas conversas por email, msn, webcam, telefone, ufa! Claro que muitas pessoas falam que isso tudo é furada, mas não com Silvério. Ele tinha certeza que encontrara algo definitivo e que mudaria sua vida. A Rosa. Não era simplesmente um nome, era um perfume que Silvério já sentira à distância e se embriagara durante meses.

Agora é sério, Silvério está dirigindo seu carro, um fusca que ele comrpou de segunda mão especialmente para causar a melhor das impressões para sua amada. Não que ele a achasse interesseira, jamais, apenas queria poder desfrutar com ela os mais gostosos momentos com passeios de carro, fazer lindas viagens. Ah, o amor...

Chegando à cidade onde Rosa morava, parou numa floricultura e comprou o mais belo buquê de rosas vermelhas que ele podia pagar. A vendedora, muito tímida, magrinha, feinha, mirradinha (muito diferente da exuberante Rosa, pensou Silvério) lhe lançou um sorriso e um olhar penetrante, que encheu Silvério de orgulho mas não foi capaz de tirá-lo de seus objetivos, nunca, imagine!

Mas Silvério estava tão ansioso que resolveu chegar primeiro ao endereço da residência de Rosa, em baixo do prédio e ver onde sua amada morava, antes de se dirigir ao restaurante onde marcaram o grande e primeiro encontro. Saiu do carro e ficou escondido atrás de uma árvore, em direção à entrada. Fitou de longe aquela construção elegante, olhou todas as janelas ansiando ver sua amada pousada no parapeito de alguma delas. Nisso vê uma moça saindo do prédio, era ela. Sim, era a sua linda e amada Rosa.

Silvério reconheceu aqueles cabelos castanhos e longos, olhos grandes e a pele alva. Num ímpeto de ir ao seu encontro, Silvério parou e viu um homem barbudo se aproximando rapidamente. Não podia acreditar no que estava vendo. O homem barbudo e Rosa se beijavam apaixonadamente.

E então Silvério ficou ali paralisado sem entender nada. Tudo à sua volta girava e o sol perdera a cor. Seu corpo tremulo o avisara que era hora de partir, sumir, esquecer quem ele era. Correu para o carro e dirigia para não sei onde. Resolvera passar pelo restaurante, ainda tinha o endereço no bolso da calça. Com suas mãos suando frio dirigia mecanicamente aquela máquina que era a única coisa que parecia ainda ter vida naquele momento. Parou em frente ao restaurante e ficou olhando para o nada. Nisso vê uma moça se aproximando da porta de entrada apressada. Ele já vira tal moça antes, ficou curioso. Resolveu sair do carro e ir atrás dela, mas ela já entrara no restaurante. Silvério foi atrás, entrou no estabelecimento e reconheceu a moça da floricultura que já estava sentada à mesa perto de uma janela.

Ele não sabia mais o que estava fazendo ali, mas resolveu sentar-se e interpelá-la, estava confuso e curioso. A moça lhe contou que ela era a Rosa com quem ele trocara todas as cartas e emails e que a moça da webcam é que era sua irmã, quem ele vira beijando o barbudo. Como entender aquilo, pensou Silvério? Não sabia se ficava enfurecido ou agradecido, ao mesmo tempo não sabia se realmente se alegrava por estar ali. Estava tonto. A Rosa não era a Rosa e ao mesmo tempo era. A moça que estava à sua frente falava-lhe tão doce, exactamente como na troca das correspondências e ao telefone, mas confessava que teve medo dele se decepcionar com sua aparência, por isso pediu ajuda de sua irmã Célia.

Após alguns minutos de conversa, Silvério estava se sentindo outro, percebeu finalmente que sua Rosa estava ali, apenas não tinha a aparência que ele imaginava, mas sua voz suave e mansa, suas palavras adocicadas davam nova tonalidade alaranjada aos raios de sol que insistiam penetrar pela janela do restaurante.

O tempo passou e num dia de outono, porém de sol, Silvério e Rosa comemoram 50 anos de casados. Célia, irmã de Rosa, orgulhosa da felicidade de sua irmã, cunhado, sobrinhos e sobrinhos-netos, conta a história dos dois ao microfone no salão de festas do clube da cidade. Ao final, os quatro filhos e 8 netos do casal se aproximam de Silvério e Rosa, cada um com um buquê de rosas vermelhas. Silvério levanta-se com dificuldade e sem ajuda de texto pronto se dirige ao microfone e, num discurso emocionado, diz ao final: "O amor é como um raio de sol, mesmo que não se queira enxergá-lo, ele existe e se fará presente; basta você deixá-lo entrar".

Por Christina M. Herrmann

Leitura, muito prazer

A leitura é um velho hábito que acompanha a humanidade. Onde quer que exista uma comunidade, existirá alguma forma de passagem de informação por meios verbais e não-verbais.

Por que temos essa necessidade? O que levou o famoso homem da caverna a colocar sua mão na parede de pedra e gravar seus primeiros rabiscos?

Talvez o sentimento que temos ao terminar o primeiro livro preferido explique um pouco. Qual terá sido mesmo? Agora são tantos! No início, apenas revistas em quadrinhos ocupavam o espaço da leitura.

Começamos devagar, buscando imaginar o que aquelas formações de letras estão querendo nos passar. Aos poucos formamos imagens, depois ações e, finalmente, emoções.
E então, sem percebermos, algo mágico já se instalou. Habitamos agora mundos mágicos sem fim, dramas e romances açucarados, histórias de mil e uma noites... Debruçados vivemos em cima do livro empoeirado e com os olhos ardendo de sono porque não existe outro momento disponível no dia.

Ler é se mover sem sair do lugar. É experimentar sem tocar. É visitar sem estar lá. É expandir horizontes internos. Existe reencarnação? Existe quando vivemos outras vidas e outras épocas através da leitura!

Por mais que um filme ou imagem possam ser agradáveis, não dá para compará-los com a leitura.

Você viu no filme Guerra nas estrelas o sorriso irônico de Darth Vader sob a máscara? Você sabia que Gandalf era um enviado dos deuses da Terra Média para ajudar os povos? Milhares de detalhes, gemas preciosas escondidas dos olhos desatentos...

Aquele que descobre essas gemas escondidas em textos sente-se um conquistador. A ele pertence o conhecimento e outros ouvirão boquiabertos suas histórias.

O mundo da literatura é muito mais vasto que o cinema ou televisão juntos, porque o livro atinge o canal mais profundo do ser: a imaginação.

Talvez um dia alguém invente um prazer melhor que a leitura. Até lá, esperarei sentada: lendo...


Por Solange Firmino

Internetês


A Língua Portuguesa mudou através dos séculos. E continua mudando. A forma de tratamento “Vossa Mercê” sofreu mudanças lingüísticas até a forma “você”, que continuou mudando até a pronúncia “cê vai?” e a actual escrita dos usuários da internet: “vc”.

Uso de abreviação na fala e na escrita não é novidade. Neologismo também não. A todo momento surgem grupos que criam seu próprio vocabulário, com palavras que às vezes se tornam gírias, como muitas expressões faladas pelos surfistas e outras “ galeras ”, “ tá ligado ?”. Alguns diálogos são até inacessíveis a pessoas que não fazem parte de alguma “tribo”.

Os usuários da internet utilizam uma linguagem própria nas salas de bate-papo. Encurtaram palavras, retiraram acentos, pontuações e criaram mais um fenômeno de variação lingüística, o internetês, uma espécie de dialecto do mundo digital com palavras e abreviaturas que são verdadeiros códigos entre internautas.

Em um canal de TV por assinatura há uma sessão chamada “Cyber Movie”, que exibe semanalmente filmes com legendas em internetês. Em alguns segundos é possível ler palavras como naum (não), kra (cara), fazendu (fazendo), estaum (estão) e D+ (demais), o que pode deixar confusa uma pessoa que não faça parte do contexto das conversas instantâneas.

É possível aprender estenografia, um tipo de escrita simplificada que aproveita melhor o tempo e o espaço, assim como o objetivo do internetês. Será que no futuro próximo haverá curso de internetês para ver os filmes ou entender o que os alunos escrevem? Aceito o dinamismo da língua, mas torço para que os cinemas não tenham a mesma idéia da TV por assinatura.

Acatar todas as grafias e falas “alternativas” e propagá-las na mídia é um exagero. Em Lingüística, aprendemos noções de variedade lingüística. E também de adequação. É preconceito lingüístico classificar os socioletos em certo e errado, de acordo com a norma padrão da língua, mas devemos ficar atentos com a adequação no uso da língua.

Vale mostrar nas escolas que a civilização não vai acabar com a expansão do internetês, mas o aluno tem que entender que a variação linguística permite escolhas adequadas e que essa linguagem é legítima, mas limitada a um tipo de interlocutor.

O internetês é uma espécie de variação da língua entre pessoas que utilizam a internet e sua característica é a agilidade e facilidade de escrita. O desafio é mostrar ao aluno que ele não pode produzir textos o tempo todo como se estivesse nas salas de bate-papo, ou seja, deve aprender a utilizar de forma adequada os diversos registros de linguagem, inclusive a norma culta.

Por Solange Firmino

maio 01, 2006

Como Jane Austen pode mudar sua vida

Alain de Botton escreveu um livro sobre Proust para mudar todas as vidas. Bom negócio. Nos últimos tempos, tenho pensado em Jane Austen para mudar a minha. Corrijo. Tenho pensado em mim, no meu bolso e nas histórias de Miss Jane para mudar as vossas. Assim é que é.

Acontece quando um amigo (melhor: uma amiga) entra aqui em casa com lágrimas nos olhos. Problemas sentimentais, por favor, não façam caso. Fatalmente, tenho sempre dois objetos sobre a mesa: uma caixa de lenços de papel e, claro, uma cópia de "Orgulho e Preconceito", o livro que Jane Austen publicou em 1813. Entrego o livro e, com palavras paternais, aconselho: Lê "Orgulho e Preconceito" e encontrarás a luz, meu amor.

Eles lêem e depois regressam, com a alma levantada, mais felizes que Mr. Scrooge ao descobrir que está vivo e é Natal. Inevitável. Jane Austen entendia mais sobre a natureza humana do que quilos e quilos de tratados filosóficos sobre a matéria.

Mas, primeiro, as apresentações: leitores, essa é Jane Austen, donzela inocente que nasceu virgem e morreu virgem. Jane, esses são os leitores (ligeira vênia). A biografia não oferece aventuras. Poderíamos acrescentar que morou com a família até ao fim. Que publicou os seus romances anonimamente, porque não era de bom tom uma mulher se entregar aos prazeres da literatura. E que suas obras, apesar de sucesso moderado, têm conhecido nos últimos anos um sucesso estrondoso e as mais díspares interpretações políticas, literárias, filosóficas, até econômicas. Já li textos sobre a importância das finanças na obra de Jane Austen. Sobre o vestuário. Sobre a decoração de interiores. Sobre os usos da ironia no discurso direto. Para não falar de filmes - mais de vinte - que os seus livros --apenas seis-- suscitaram nos últimos tempos. O último "Orgulho e Preconceito" foi recentemente filmado no Reino Unido, com Keira Knightley (suspiros, suspiros) no papel principal. Vai aos Globos de Ouro. Provavelmente, aos Oscars também.

A loucura é total. Jane Austen mal sabia que, depois da morte, em 1817, o mundo acabaria por descobri-la e, sem maldade, usá-la e abusá-la tão completamente. Justo. Considero Jane Austen uma das maiores escritoras de sempre. Incluo os machos na corrida. Sem Austen, seria impensável encontrar Saki, Beerbohm ou Wodehouse. Miss Jane é mãe de todos.

E "Orgulho e Preconceito"? "Orgulho e Preconceito" tem eficácia garantida para males de amor. Vocês conhecem a história: Elizabeth, filha dos Bennet, classe média com riqueza nos negócios (quel horreur!), conhece Darcy, aristocrata pedante. Ela não gosta da soberba dele. Ele começa por desprezar a condição dela --social, física-- no primeiro baile onde se encontram. Com o tempo, tudo se altera. Darcy apaixona-se por Elizabeth. Elizabeth resiste, alimentada ainda pelas primeiras impressões sobre Darcy. Darcy declara-se a Elizabeth, sem baixar a guarda do preconceito social. Elizabeth não perdoa o preconceito de Darcy e, ferida no orgulho, recusa os avanços. Darcy vai ao "Faustão". Não, invento. Darcy lambe as feridas e afasta-se. Mas tudo está bem quando termina bem: Darcy e Elizabeth, depois das primeiras tempestades, estão condenados ao amor conjugal. Aplausos. The end.

As consciências feministas, ou progressistas, sempre amaram a atitude de Elizabeth: nariz alto, opiniões fortes, capaz de vergar Darcy e o seu preconceito aristocrático. Elizabeth seria uma espécie de Julia Roberts em "Pretty Woman", capaz de conquistar, com seu charme proletário, um Richard Gere que fede a presunção. "Orgulho e Preconceito" seria, neste sentido, um livro anticonservador por excelência, ao contrário de "Sensibilidade e Bom Senso", onde a hierarquia social tem a palavra decisiva. Elizabeth não é boneca de luxo, disposta a suportar os mandos e desmandos do macho. Ela exige respeito. Pior: numa família com dificuldades financeiras, Elizabeth comete o supremo ultraje --impensável no seu tempo-- de recusar propostas de casamento que salvariam a sua condição e a conta bancária de toda a família. A mãe de Elizabeth, deliciosamente histérica, atravessa o romance com achaques nervosos, prostrada no sofá. Se "Orgulho e Preconceito" fosse um romance pós-moderno, a pobre mãezinha passaria metade do tempo suspirando: Esta filha vagabunda vai levar a família toda para a sarjeta!

Elizabeth não cede e triunfa. A família também. E os leitores progressistas?

Esses, não. Os leitores progressistas tendem a ler "Orgulho e Preconceito" como se existissem na trama duas personagens distintas, vindas de mundos distintos, com vícios e virtudes também distintos. Darcy contra Elizabeth, até ao dia em que o amor é mais forte. Erro. Jane Austen não era roteirista em Hollywood. E os leitores progressistas saberiam desse erro se soubessem também que o título original de "Orgulho e Preconceito" não era "Orgulho e Preconceito". Era, tão simplesmente, "Primeiras Impressões".

Nem mais. Se existe um tema central no romance, não é Elizabeth, não é Darcy. E não é, escuso de dizer, o dinheiro, a ironia dos diálogos ou a decoração de interiores. "Orgulho e Preconceito" é uma meditação brilhante sobre a forma como as primeiras impressões, as idéias apressadas que construímos sobre os outros, acabam, muitas vezes, por destruir as relações humanas.

De igual forma, "Orgulho e Preconceito" não é, como centenas e centenas de histórias analfabetas, uma história de amor à primeira vista. É, como escreveu Marilyn Butler, professora em Cambridge e a mais importante crítica de Austen, uma história de ódio à primeira vista. E a lição, a lição final, é que amor à primeira vista ou ódio à primeira vista são uma e a mesma coisa: formas preguiçosas de classificar os outros e de nos enganarmos a nós. Elizabeth despreza a arrogância de Darcy sem perceber que essa arrogância, às vezes, é uma forma de defesa: o amor assusta mais do que todos os fantasmas que habitam o coração humano. Darcy despreza Elizabeth porque Elizabeth é uma ameaça ao seu conforto social e até sentimental. Elizabeth e Darcy não são personagens distintos. Eles são, no seu orgulho e preconceito, personagens rigorosamente iguais.

Jane Austen acertou. Duplamente. Como literatura e como aviso. O amor não sobrevive aos ritmos da nossa modernidade. O amor exige tempo e conhecimento. Exige, no fundo, o tempo e o conhecimento que a vida moderna de hoje não permite e, mais, não tolera: se podemos satisfazer todas as nossas necessidades materiais com uma ida ao shopping do bairro, exigimos dos outros igual eficácia. Os seres humanos são apenas produtos que usamos (ou recusamos) de acordo com as mais básicas conveniências. Procuramos continuamente e desesperamos continuamente porque confundimos o efêmero com o permanente, o material com o espiritual. A nossa frustração em encontrar o "amor verdadeiro" é apenas um clichê que esconde o essencial: o amor não é um produto que se compra para combinar com os móveis da sala. É uma arte que se cultiva. Profundamente. Demoradamente.

Por isso, leitores desesperados e sonhadores arrependidos, leiam Jane Austen e limpem as vossas lágrimas! Primeiras impressões todos temos e perdemos. Mas o amor só é verdadeiro quando acontece à segunda vista.
João Pereira Coutinho, 29, é colunista do jornal português "Expresso". Reuniu os seus artigos no livro "Vida Independente: 1998-2003". Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

Biografia de Rui Belo

Ruy de Moura Ribeiro Belo nasceu em 1933 em São João da Ribeira, Rio Maior.
Licenciou-se em Filologia Românica e em Direito, pela Universidade de Lisboa, e obteve o grau de doutor em Direito Canónico pela Universidade Gregoriana de Roma, com uma tese intitulada «Ficção Literária e Censura Eclesiástica».
Membro numerário do Opus Dei na juventude, rompeu com o instituto em 1961 (ano em que publicou o seu primeiro livro “Aquele Grande Rio Eufrates”) e casou com Maria Teresa Belo, de quem teve três filhos.
Exerceu, ainda que brevemente, um cargo de director-adjunto no então ministério da Educação Nacional, mas o seu relacionamento com opositores ao regime da época, a participação na greve académica de 1962 e a sua candidatura a deputado, em 1969, pelas listas da Comissão Eleitoral de Unidade Democrática, levaram a que as suas actividades fossem vigiadas e condicionadas.
Foi durante algum tempo funcionário no departamento editorial da União Gráfica, repartiu-se depois entre um escritório de advocacia, como canonista, e a Universidade de Madrid, onde durante sete anos (1971-1977) foi leitor de Português, cargo preenchido com brilho invulgar, sem no entanto suscitar o mínimo interesse por parte da nossa representação diplomática. Foi também, na sua passagem pela imprensa, director literário da Editorial Aster e chefe de redacção da revista “Rumo”.
Regressado a Lisboa, Ruy Belo tentou em vão entrar para o corpo docente da Faculdade de Letras de Lisboa: na altura da sua morte ia mais uma vez concorrer a um lugar de assistente mas foi-lhe recusada essa possibilidade, e foi dar aulas na Escola Técnica do Cacém, no ensino nocturno. Faleceu em 1978, em Lisboa, vítima de ataque cárdio-vascular.
Em 1991 foi condecorado, a título póstumo, com o grau de Grande Oficial da Ordem Militar de Sant'iago da Espada.
Os seus primeiros livros de poesia foram “Aquele Grande Rio Eufrates” (1961) e “O Problema da Habitação” (1962). Às colectâneas de ensaios “Poesia Nova” (1961) e “Na Senda da Poesia” (1969), seguiram-se obras cuja temática se prende ao religioso e ao metafísico, sob a forma de interrogações acerca da existência. É o caso de “Boca Bilingue” (1966), “Homem de Palavras(s)” (1969), “País Possível” (1973, antologia), “Transporte no Tempo” (1973), “A Margem da Alegria” (1974), “Toda a Terra” (1976) e “Despeço-me da Terra da Alegria” (1977). O versilibrismo dos seus poemas conjuga-se com um domínio das técnicas poéticas tradicionais. A sua poesia encontra-se recolhida em “Obra Poética de Ruy Belo” (volumes 1 e 2) sendo considerada uma das obras cimeiras (apesar da brevidade da vida do poeta) da poesia portuguesa contemporânea.
Apesar do seu curto período de actividade literária, Ruy Belo tornou-se num dos maiores poetas portugueses da segunda metade do século XX, tendo as suas obras sido reeditadas diversas vezes. Destacou-se ainda pela tradução de autores como Antoine de Saint-Exupéry, Montesquieu, Jorge Luís Borges e Federico García Lorca.
Em 2001, publicou-se “Todos os Poemas”.
À mulher e aos amigos, durante muitos anos, Ruy Belo foi dizendo que a sua tese para a Universidade Gregoriana de Roma estava escrita em latim. Mas «Ficção Literária e Censura Eclesiástica» é em português e figura nas «Obras completas» publicadas pela Editorial Presença sob a orientação de Joaquim Manuel Magalhães, juntamente com os ensaios de “Na senda da poesia” (1969) e um acervo de poesia inédita.
Muitos destes inéditos encontram-se dispersos por Queluz, onde Ruy Belo residia e onde morreu em Agosto de 1978, e pela Consolação, uma praia da costa de Peniche onde ele tinha um pequeno piso de férias e privou de perto com Fernandes Jorge e Magalhães, seus constantes amigos. Trata-se na maioria, de versos da juventude e apontamentos dos últimos tempos.

Muriel

Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas a dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava
Tu sabes como era se soubesses como é
Numa vida tão curta mudei tanto
que é um certo espanto que no espelho de manhã
distraído diviso a cara que me resta
depois de tudo quanto o tempo me levou
Eu tinha uma cidade tinha o nome de madrid
havia as ruas as pessoas o anonimato
os bares os cinemas os museus
um dia vi-te e desde então madrid
se porventura tem ainda para mim sentido
é ser a solidão que te rodeia a ti
Mas o preço que pago por te ter
é ter-te apenas quanto poder ver-te
e ao ver-te saber que vou deixar de ver-te
Sou muito pobre tenho só por mim
no meio destas ruas e do pão e dos jornais
este sol de janeiro e alguns amigos mais
Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo
pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te
Eu aprendi a ver na minha infância
vim a saber mais tarde a importância desse verbo para os gregos
e penso que se bach hoje nascesse
em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior
que esta mesma tarde num concerto ouvi
teria concebido aqueles sweet hunters
que esta noite vi no cinema rosales
Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem
e penso que se nunca a bem dizer te vejo
se fosse além de ver-te sem remédio te perdia
Mas eu dizia que te via aqui e acolá
e quando te não via dependia
do momento marcado para ver-te
Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde sempre chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora certa aquele lugar?
À força de o pensar penso que não
Na melhor das hipóteses estou longe
qualquer de nós terá talvez morrido
No fundo quem nos visse àquela hora
à saída do metro de serrano
sensivelmente em frente daquele bar
poderia pensar que éramos reais
pontos materiais de referência
como as árvores ou os candeeiros
Talvez pensasse que naqueles encontros
em que talvez no fundo procurássemos
o encontro profundo com nós mesmos
haveria entre nós um verdadeiro encontro
como o que apenas temos nos encontros
que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes
Isso era por exemplo o que me acontecia
quando há anos nas manhãs de roma
entre os pinheiros ainda indecisos
do meu perdido parque de villa borghese
eu via essa mulher e esse homem
que naqueles encontros pontuais
decerto não seriam tão felizes como neles eu
pois a felicidade para nós possível
é sempre a que sonhamos que há nos outros
Até que certo dia não sei bem
ou não passei por lá ou eles não foram
nunca mais foram nunca mais passei por lá
Passamos como tudo sem remédio passa
e um dia decerto mesmo duvidamos
dia não tão distante como nós pensamos
se estivemos ali se madrid existiu
Se portanto chegares tu primeiro porventura
alguma vez daqui a alguns anos
junto de califórnia vinte e um
que não te admires se olhares e não me vires
Estarei longe talvez tenha envelhecido
terei até talvez mesmo morrido
Não te deixes ficar sequer à minha espera
não telefones não marques o número
ele terá mudado a casa será outra
Nada penses ou faças vai-te embora
tu serás nessa altura jovem como agora
tu serás sempre a mesma fresca jovem pura
que alaga de luz todos os olhos
que exibe o sossego dos antigos templos
e que resiste ao tempo como a pedra
que vê passar os dias um por um
que contempla a sucessão da escuridão e luz
e assiste ao assalto pelo sol
daquele poder que pertencia à lua
que transfigura em luxo o próprio lixo
que tão de leve vive que nem dão por ela
as parcas implacáveis para os outros
que embora tudo mude nunca muda
ou se mudar que se não lembre de morrer
ou que enfim morra mas que não me desiluda
Dizia que ao chegar se olhares e não me vires
nada penses ou faças vai-te embora
eu não te faço falta e não tem sentido
esperares por quem talvez tenha morrido
ou nem sequer talvez tenha existido.

Rui Belo