março 30, 2006

Dores de dantes

Era um rei que tinha tudo e podia tudo. E que, por isso, estava farto. Mergulhado em tal enfado, dava-lhe para as crises de nostalgia. Um dia, a memória trouxe-lhe o sabor das tartes de framboesas silvestres que comia em criança. Mandou vir o melhor cozinheiro do reino. Queria – na realidade ele disse «quero»- provar outra vez o gosto de antigamente. Decretou que o cozinheiro confeccionasse uma tarte escrupulosamente cumpridora da receita da sua infância. Queria – «quero» – que lhe soubesse ao mesmo. Se não? cortava-lhe a cabeça. O cozinheiro respondeu que então melhor seria ir já chamando o carrasco. Por mais que ele fosse fiel à prescrição original, nenhuma tarte de framboesas silvestres lhe resgataria os mesmo sabores da infância. Consta que o rei o despediu. Sumariamente.

Ninguém se pode banhar duas vezes nas mesmas águas do mesmo rio. Não tanto porque Heraclito assim o tenha proclamado. Mas porque estão poluídos os rios da nossa infância.

Dizem que os rios arrastam consigo para o mar os reflexos dos sítios por onde passam. Também na nossa vida, vamos arrastando reflexos, sedimentos, areias para um oceano feito de memórias. Umas tão profundas que só revolvidas por uma tempestade algum dia chegarão à tona. Outras andam por ali à mão de pescar. Ou vêm dar serenamente à praia, embrulhadas nas ondas, arrastadas nas correntes: basta a vibração de um som, um cheiro especial, o sabor de um gelado, uma chuva oblíqua a bater na vidraça, um limpa-pára-brisas que guincha, tábuas de um soalho que rangem?

Jorge Luís Borges contava que, um dia, o pai lhe explicou como, na verdade, não conseguimos guardar as memórias de infância. Guardamos apenas a memória da primeira vez que nos lembramos delas. São sempre memórias em segunda mão. Memórias de memórias. Turvadas por pontos de vista de entremeio e outros pontos acrescentados. Afinal, todas as memórias são falsas. Se calhar, como os sonhos, se os contamos e os traduzimos por palavras, tiramo-los da twilight zone, tornam-se outra coisa. Ainda bem que existem fotos, registos e as cicatrizes que nos fazem acreditar que o passado existiu mesmo.

Depois há umas memórias da infância profunda que, apesar de desprezadas pela nossa consciência, continuam retidas, continuamente a dar sinal de si, continuamente a apregoar-se, apesar de serem inúteis como um noticiário de véspera. Ou inoportunas como quem tenta impingir um copo de água a um homem prestes a afogar-se. Ou estreitas, inacessíveis, difíceis de consultar como folhear o jornal em dia de temporal. E chega de metáforas. Memórias são o reino da redundância. O domínio da irrelevância. Limitam-se a estar lá e pronto. Outras acrescentam-nos qualquer coisa. Outras, ainda que remotas, fazem-nos voltar a sentir uma dor já revogada e ainda conseguem pôr-nos a chorar. São dores de dantes.

Imprudente este exercício de contemplar o poço das memórias. Se olhamos muito para ele arriscamo-nos a que ele comece a olhar muito para nós. E ficamos ali, à beira do precipício do sentimentalismo, atraídos pelo abismo de nostalgias retrógadas, ingenuamente reféns de pensamentos banais, enredados no labirinto da saudade. É que as recordações de infância, às vezes, levam-nos aonde não somos realmente chamados. Há quem diga que a melhor maneira de sair de um labirinto é ir virando, em cada encruzilhada, sempre à direita. Sem hesitar nem olhar para trás.

Há pessoas que transportam as migalhas de felicidade do passado como se fossem condecorações. E as preservam intactas, ano após ano, quem sabe até ao fim das suas vidas, com a destreza de quem carrega um ovo em cima de uma colher por montes e vales. Afinal, é aquilo que de mais adquirido temos na vida, as nossas memórias, os nossos próprios dejá vù. Esses já ninguém nos pode tirar.

Álvaro Cunhal falou em, pelo menos, duas entrevistas de uma recordação de infância que nunca mais o largou. Era miúdo, tinha uma fisga e, um dia, atirou a umas andorinhas. Acertou numa. E, orgulhoso, trouxe o troféu da batalha, inerte, pendido, a mostrar ao pai. Em lugar de lhe elogiar a pontaria, o pai repreendeu-o. Ficou-lhe para sempre a lição associada à lembrança: nunca matar uma andorinha.

São assim, desconexas, caóticas, desorganizadas, sem ficheiro definido, memórias que vão e vêm, como as associações de ideias. Sempre que pisamos o teclado preto e branco da calçada portuguesa lembramo-nos de jogos antigos de regras implacáveis e consequências mágicas. Se conseguíssemos percorrer o caminho, a contornar os desenhos, sem pisar as pedras pretas? mas havia sempre uma mão que nos puxava, que nos forçava a infringir a lei suprema dos passeios.

Sempre que viajamos no banco de trás de um carro, lembramo-nos das caretas com que brindávamos os ocupantes dos outros carros. E aquele invólucro de vidro e caixilharia metálica era o nosso escudo protector, à prova de reprimendas e do mau humor dos condutores. Sempre que olhamos o movimento pendular de um baloiço lembramo-nos de acreditar que, com mais um impulso, conseguiríamos fazer uma rotação completa de 360 graus, e a lei da gravidade ainda nem sequer tinha sido inventada.

Sempre que as formigas nos saqueiam a despensa, lembramo-nos como outrora lhes engarrafávamos os carreiros, com pedras e outros obstáculos, e lhes congestionávamos a entrada nos formigueiros. E sentíamo-nos poderosos imperadores, bastava um dedo para alvoroçar toda uma comunidade de patinhas, há um segundo atrás, ordeiras e enfileiradas.

Quando um raio de sol nos corta os cortinados, lembramo-nos de como aquele foco de luz nos revelava um universo de poeiras brilhantes e partículas voadoras, que se moviam em várias direcções? Qualquer coisa de misterioso, de extra-terrestres devia haver naquele mundo oculto, que aparecia e desaparecia, sob os caprichos das sombras. Ou das nuvens.

Os miúdos de hoje podem até não ter tempo para contemplar partículas e ácaros voadores. Mas sabem que, há meses, depois de 7 anos e 4600 milhões de quilómetros, uma cápsula espacial aterrou no deserto do Utah com um colher de café de poeiras recolhidas da cauda de um cometa. E que ficaram presas numa matéria quase etérea, o aerogel, chamada fumo azul.

Os miúdos de hoje podem não saber o que é um polícia sinaleiro. Mas todos sabem o que é um arrumador.

Os miúdos de hoje podem não saber o que é uma mercearia. Mas todos sabem o que é um hipermercado.

E questionam-nos, com olhos de assombro: como foi possível sobrevivermos a uma infância sem playstation2 nem PSP, sem game boy advanced ou o game boy SP, sem DVDs, sem GoogleEarth, sem Runscape, jogo interplanetário na internet que põe em rede miúdos de todo o mundo, sem 60 canais por Cabo, sem telemóveis tipo canivete suíço, (que servem para tudo, para além de telefonar), sem MP3s, sem ATLs no fim das aulas?

E, por puro marketing materno, nem vale a pena confessar-lhes que andávamos de bicicleta sem capacete nem cotoveleiras, que quando estávamos constipados, as nossas avós resolviam o assunto com Vick Vaporuc e uns tubos que se enfiavam no nariz e cheiravam a eucalipto (e outros bálsamos que hoje arrepiam os alergologistas), que andávamos no banco da frente dos carros, e soltos lá atrás, sem cinto, nem cadeirinha especial.

Mas enfim, lá se foi vivendo. Sem memórias. Só com futuro pela frente.

E, hoje, porque descer até às memórias não custa nada. Dispensamos o elevador. Seguimos pelas escadas. Rolantes.

In Revista Visão de 30.Mar.2006 - Por: Ana Margarida Carvalho