março 25, 2006

Já me estão a cansar...

"Já me estão a cansar... parem lá com a mania de que digo muitos palavrões, caralho! Gosto de palavrões! Como gosto de palavras em geral. Acho os indispensáveis a quem tenha necessidade de dialogar... mas dialogar com carácter! O que se não deve é aplicar um bom palavrão fora do contexto, quando bem aplicado é como uma narrativa aberta, eu pessoalmente encaro os na perspectiva literária! Quando se usam palavrões sem ser com o sentido concreto que têm, é como se estivéssemos a desinfectá los, a torná los decentes, a recuperá los para o convívio familiar.

Quando um palavrão é usado literalmente, é repugnante. Dizer "Tenho uma verruga no caralho" é inadmissível. No entanto, dizer que a nova decoração adoptada para a CBR 900'2000 não lembra o "caralho", não mete nojo a ninguém. Cada vez que um palavrão é utilizado fora do seu contexto concreto e significado, é como se fosse reabilitado. Dar nova vida aos palavrões, libertando os dos constrangimentos estritamente sexuais ou orgânicos que os sufocam, é simplesmente um exercício de libertação. Quando uma esferográfica não escreve num exame de Estruturas "ah a grande puta" ("... não escreve!"), desagrava se a mulher que se prostitui.

Em Portugal é muito raro usarem se os palavrões literalmente. É saudável. Entre amigos, a exortação "Não sejas conas", significa que o parceiro pode não jogar um caralho de GT2. Nada tem a ver com o calão utilizado para "vulva", palavra horrenda, que se evita a todo o custo nas conversas diárias. Pessoalmente, gosto da expressão "É fodido..." dito com satisfação até parece que liberta a alma! Do mesmo modo, quando dizemos "Foda se!", é raro que a entidade que nos provocou a imprecação seja passível de ser sexualmente assaltada.
Por ex.: quando o Mário Transalpino "descia" os 8 andares para ir à garagem buscar a moto e verificava que se tinha esquecido de trazer as chaves... "Foda se"!! não existe nada no vocabulário que dê tanta paz ao espírito como um tranquilo "Foda se...!!". O léxico tem destas coisas, é erudito mas não liberta. Os palavrões supostamente menos pesados como "chiça" e "porra", escandalizam me. São violentos.

Enquanto um pai, ao não conseguir montar um avião da Lego para o filho, pode suspirar após três quartos de hora, "ai o caralho...", sem que daí venha grande mal à família, um "chiça", sibilino e cheio, pode instalar o terror. Quando o mesmo pai, recém chegado do Kit Market ou do Aki, perde uma peça para a armação do estendal de roupa e se põe, de rabo para o ar, a perguntar "onde é que se meteu a puta da porca...?", está a dignificar tanto as putas como as porcas, como as que acumulam as duas qualidades.

Se há palavras realmente repugnantes, são as decentes como "vagina", "prepúcio", "glande", "vulva" e "escroto". São palavrões precisamente porque são demasiadamente inequívocos... para dizer que uma localidade fica fora de mão, não se pode dizer que "fica na vagina da mãe" ou "no ânus de Judas". Todas as palavras eruditas soam mais porcas que as populares e dão
menos jeito! Quem é que se atreve a propor expressões latinas como "fellatio" e "cunnilingus"? Tira a vontade a qualquer um! Da mesma maneira, "masturbação" é pesado e maçudo, prestando se pouco ao diálogo, enquanto o equivalente popular "esgaçar um pessegueiro", com a ressonância inocente que tem, de uma treta que se faz com o punho, é agradavelmente infantil.

Os palavrões são palavras multifacetadas, muito mais prestáveis e jeitosas do que parecem. É preciso é imaginação na entoação que se lhes dá.Eu faço o que posso."

MIGUEL ESTEVES CARDOSO

fonte: http://www.truca.pt/coisas_serias_material/coisas_serias_antigas/coisas_serias12.html