março 24, 2006

No princípio eram... palavras, palavras, palavras

Era muito dado a estados contemplativos. Que o deixavam em disposição horizontal, nariz apontado para o céu, durante tiras a fio. E pairavam reflexões no ar, envoltas em balões flutuantes, precedidos de uma série de bolhinhas em fila indiana. Outras vezes transbordava de paixão, apetecia-lhe caninamente beijar Lucy. Isto, quando não enfiava os óculos de aviador da primeira guerra mundial e fazia da casota avião. Ou quando não entabulava um dos diálogos mais monologantes da história da BD, com um pássaro amarelo chamado Woodstock, que só lhe respondia por apóstrofes e asteriscos. Ou quando não lhe puxava a veia literária. Nessas alturas, sentava-se no telhado e apoderava-se da máquina de escrever. Começava invariavelmente assim: «It was a dark and stormy night...»

O início de romance favorito de Snoopy. Mais famoso por aparecer nos quadradinhos de Charles Schulz do que por ter sido escrito por um romancista inglês do século XIX, chamado George Earl Bulwer-Lytton. Aliás, o próprio autor ficou mais famoso pelo primeiro parágrafo do que pelo resto do livro todo. São consideradas as piores linhas de sempre de abertura de um romance: «Era uma noite escura e tempestuosa; a chuva caía em torrentes, excepto em intervalos ocasionais quando era revolvida por um golpe de vento que varria as ruas, porque era em Londres que esta história se passava (...)». Anualmente decorre um concurso, como o nome deste escritor, numa variante de prémios igNóbeis, para seleccionar os mais ridículos e absurdos princípios de uma obra de ficção.

É o momento crucial. O ponto (final) de partida. Se o título e a capa são a porta do livro, a primeira frase é o que faz com que, através da frincha entreaberta, o leitor se detenha na ombreira e espreite lá para dentro. E entre. Ou saia rapidamente, com maior ou menor estrépito, e vá bater a outra freguesia. Que é como quem diz a outro livro. Se, com esse início, conseguirmos fazê-lo entrar até ao hall já é uma vitória. Mas a batalha só está ganha se ele se embrenhar na casa, experimentar a sala, visitar a cozinha, passar pelos WCs, inspeccionar a despensa, deitar-se no quarto, esquadrinhar os cantos, os vãos e as zonas sombra, subir as escadas, agarrar-se ao corrimão, percorrer os corredores, os sótãos, as caves, ir até às varandas, voltar para dentro... E só sair da habitação depois de conhecer todas as suas dependências, metro quadrado por metro quadrado, tijolo por tijolo. E que saia pela porta dos fundos, de preferência.

Salvaguardadas as devidas e quilométricas distâncias, no jornalismo também é assim. A pesca faz-se à (primeira) linha. Ou o leitor morde o anzol, (chamamos-lhe lead ou superlead), ou vai procurar isco para a página seguinte. Há jornalistas completamente obcecados pela forma como abrem os seus artigos. Não conseguem começar a escrever, antes de encontrar a melhor composição para pendurar no anzol. É uma sensação estranha, quase paralisante.. Ou uma boa desculpa. Outros preferem deixar a abertura para o fim, depois de acabarem de escrever toda a reportagem, como aconselham sabiamente os manuais de jornalismo. Gabriel García Marquéz, que antes de ser imortal nobelizado já foi comum jornalista, falava, numa entrevista, na técnica de «hipnotizar» o leitor de jornais às primeiras linhas. Depois, havia que ir sucedendo as frases, uma após outra, com muita suavidade, assegurando que o ritmo respiratório do leitor permanecesse estável, ligá-lo ao ventilador nos primeiros parágrafos se preciso fosse, deixá-lo atingir a fase REM, sem ruídos, sem redundâncias, sem sobressaltos ortográficos, nem estereótipos estafados, para que ele não despertasse, até à última linha da última página.

Isto vindo do escritor que esteve tentado a substituir o apelido do seu coronel Aureliano Buendía porque lhe rimava com os pretéritos imperfeitos e que perseguia implacavelmente todos os advérbios que se atravessassem insidiosamente nas frases e lhe banalizavam a prosa. Eliminava-os. Impiedosamente. Um dia, iniciou desta forma inesquecível a sua obra-prima: «Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que o seu pai o levou para conhecer o gelo» (Cem Anos de Solidão).

Mas nem todas as aberturas (Incipit) são astúcias de Xerezade para captar a atenção de leitores. Os contos de fadas não seriam de fadas se não começassem por «era uma vez». Os antigos iniciavam os seus poemas com uma invocação às musas. Na época moderna os autores deixavam bem claro, no primeiro parágrafo, as pessoas e os factos de que iam tratar, localizados no tempo e no espaço. «Nasci na cidade de York no ano de 1632, originário de boas famílias...» (Robison Crusoe, Daniel Defoe). Outros preferiram retocar os factos com uma névoa de indefinição lendária: «Em certo lugar da Mancha, de cujo o nome não quero lembrar-me, vivia, não há muito, um fidalgo, dos de lança em cabido, adarga antiga, rocim fraco e galgo corredor» (D. Quixote, Cervantes). Outros foram directos ao assunto: «Chamem-me Ismael» (Moby Dick, Herman Melville). Ou interrogaram directamente o desprevenido leitor: «Conheceis a Beira-alta?» (Mário, Silva Gaio). Outros assumiram o relato biográfico com um prolixo e irónico excesso de zelo, a partir da fase pré-embrionária (Tristram Shandy, Laurence Sterne). Ou retardaram a inauguração da história, como Aquilino, a descrever o percurso subterrâneo de uma bolota taluda «muito quieta e resfastelada» antes de ser carvalho (A Casa Grande de Ramarigães). Outros optaram por primeiras linhas minimalistas: «Tom! Ninguém respondeu. Tom! Nada.» (Tom Swayer, Mark Twain) Outros pelos inícios-choque: o caixeiro viajante a despertar de um sonho intranquilo transformado em insecto monstruoso (Metamorfose, Kafka) ou simplesmente com uma frase definitiva: «No dia seguinte ninguém morreu» (As Intermitências da Morte, José Saramago).

Italo Calvino escreveu um romance labiríntico feito de inícios de romances. Começa assim: «O romance começa numa estação de caminho-de-ferro, uma locomotiva resfolga, um ofegar de êmbolo cobre a abertura do capítulo, uma nuvem de fumo esconde parte do primeiro parágrafo».(Se Numa Noite de Inverno Um Viajante).

Há princípios que são tão reconhecíveis como a história que vão iniciar, apesar de não fazerem parte dela. Como o enfado da menina, sem nada para fazer, antes de passar o coelho apressado e de ter um buraco por onde cair (Alice no País das Maravilhas, Lewis Carroll). Ou o chapéu desenhado que afinal era jibóia deglutidora de elefantes invisível aos olhos formatados de adulto (O Princepezinho, Antoine de Saint- Exupéry). Gonçalo M. Tavares também fala de elefantes em Nove Insultos a Nove Animais (numa colectânea de quatro autores chamada Quatro Histórias com Barão): «O elefante é um animal de azares: nasceu gordo no meio e fininho nas pontas. (...) E ser frágil nas extremidades, no início e no fim, é um erro fatal, para romances e elefantes. No romance a primeira frase é fundamental, e a última é aquela que pode deixar o leitor a meditar. No elefante falhou tudo excepto o centro, que é gordo e enorme.»

E já vai cheio, gordo, pesadão este (mais de) meio de crónica. Elefante de barriga pendente, distendida, a rojar pelo chão. Para os jornalistas esta é a fase de distensão, depois do stress da abertura. Aquela em que os parágrafos fluem, desembrulham-se, desenrolam-se rapidamente como o fio de papagaio com vento de feição. Não há grandes regras. Quer dizer, a única é mesmo não dar muito fio, se não se quer perder de vista o papagaio. Havia um professor que dizia que preferia não ser muito interventivo, deixava os alunos errar, emendar sozinhos as suas asneiras, desde que não perdessem por completo o pé, até podiam engolir alguns pirolitos, não fazia mal. E ele ficava ali, vigilante, de pé nas margens, enquanto os alunos nadavam, às vezes desajeitados, a ensaiar estilos, a chapinhar um bocado. Mas quando algum deles se afastava demasiado de terra, o professor fazia sinal para que voltasse a aproximar-se. O truque é, quando se escreve, instalar um professor destes dentro de nós, como quem instala um programa corrector no computador. Se estamos a divagar e nos afastamos demasiado, sentimos o professor, lá dentro, a acenar, a acenar... Às vezes não obedecemos.

Há quem diga que é nos primeiros três minutos que decidimos se nos apaixonamos por alguém. Os primeiros olhares, os primeiros gestos, as primeiras palavras. Os primeiros passos são sempre determinantes. Para um bebé ou para a humanidade, se forem dados na Lua. Um filme tem dez minutos para mostrar o que vale, se até aí não tiver cativado a atenção do espectador, nada a fazer. Claro que é sempre possível subverter os cânones. Há sempre Manóeis de Oliveira que abominam o convencional, constroem barreiras narrativas logo à partida, ao espectador resta-lhe escalar, se quiser, a custo. E dois minutos de travelling em torno de uma árvore é quase um muro de Berlim.

O que dizer então das primeiras linhas? O que há de mesmo muito interessante nos inícios é aquilo de que falava Italo Calvino, a imensa liberdade, o mundo de opções à nossa disposição, a possibilidade de dizer tudo, de todos os modos possíveis. Uma potencialidade ilimitada e multiforme. Mas assim que se ergue a ponte levadiça da escrita e passamos para o outro lado, pronto, entramos noutro mundo, no mundo verbal, denunciamos as nossas preferências, o nosso estilo, as nossas não opções. É indelicadeza dos princípios, serem pouco discretos. Delatores até. Sorte a dos pintores. Nos quadros os inícios estão ocultos, as primeiras pinceladas, os primeiros esboços nunca são apregoados em público. É um segredo que fica entre o autor e uns abelhudos aparelhos raios-x.

Qualquer início é sempre o princípio do fim. Mas nos romances a imortalidade não começa depois do fim, mas depois do princípio. Enfim, por esta altura, está um vulto, ao longe, no cimo da falésia, a acenar, acenar para o mar alto... O professor.

Sorte a dos elevadores que só sobem e descem e não embarcam em conversas laterais. Sorte?

DE ANA MARGARIDA DE CARVALHO - "NO PRINCÍPIO ERAM... PALAVRAS, PALAVRAS, PALAVRAS"
(In Revista Visão - 23 de Março de 2006)