março 25, 2006

O Quarto Anjo


Após criar o primeiro anjo, Deus ofereceu-lhe um poderoso par de asas. Explicou-lhe que aquilo era mais um aparato de fé do que de voo.

"Os pássaros", assegurou-lhe: "voam sobretudo por convicção."

O anjo viu como voavam os pássaros, batendo as asas e recolhendo as pernas, e imitou-os. Ao fim de cinco meses tinha ganho uma certa prática, e até já conseguia fazer algumas piruetas, incluindo voo picado seguido de um, é certo que não muito feliz, duplo mortal invertido. Não era ainda uma águia, mas também não poderia ser confundido com uma galinha. Enfim, voava.

"Agora tira-as", disse-lhe então Deus, que o observara em silêncio, a uma distância discreta, durante todos aqueles dias:

"Tira essas asas e voa."

O anjo olhou para Ele incrédulo. Protestou:

"E eu lá sou doido, ó Deus?! Tiro coisa nenhuma!..."

Deus, o qual, como se sabe, é brasileiro, não estranhou nem que o anjo falasse português, nem sequer o forte sotaque carioca; a língua e o sotaque, claro, aprendera-as com Ele. Compreendeu, todavia, que lhe faltava o essencial, a fé, além de uma educação um pouco mais esmerada, pois, bem vistas as coisas, tratava-se de um anjo, ainda que numa fase de iniciação - e num rápido gesto de enfado, descriou-o.

O segundo anjo era, sem dúvida, um sujeito mais cordato e delicado. Muito loiro e frágil. Muito anjo. Tinha uma cabeleira comprida, que gostava de trazer sempre limpa e entrançada, num gracioso rabo-de-cavalo. Aprendeu a voar mais depressa do que o primeiro, com uma técnica original, que deixava os pássaros envergonhados. Porém, quando Deus lhe pediu que tirasse as asas e se lançasse assim, inteiramente nu, de um penhasco altíssimo, também ele recusou.

"Saiba o Senhor que isso eu não faço. Com o seu perdão, meu Deus, faço qualquer coisa menos isso."

Disse aquilo com voz trémula e humilde, sem sombra de arrogância, de forma que o Criador se apiedou dele e o deixou ir. O anjo pintou as asas de cor-de-rosa e juntou-se a um bando de flamingos. Dizem alguns gnósticos que ainda hoje é possível ver, em certos crepúsculos inflamados, nalgum palude perdido de África, um anjo voando, com singular elegância, entre uma nuvem de flamingos. Eu nunca o vi, mas pode ser.

O terceiro anjo fê-lo Deus mais prático e destemido. Usava um bigode curvo e era respeitoso e de poucas palavras. Voava sem esforço, mas também sem agrado. Pousava nos ramos das mangueiras, ou de outras árvores igualmente altas e frondosas, e era capaz de ficar por ali, sentado, tardes inteiras, a cofiar o forte bigode, a comer mangas e a fruir a sombra fresca e o canto das aves. Quando Deus lhe pediu que subisse ao penhasco e que tirasse as asas e saltasse, não o contestou. Não disse nada. Voou até ao penhasco, tirou as asas e saltou. Ficou claro, naquele trágico instante, que o que lhe sobrava em disciplina faltava-lhe em fé. Ou melhor, como Deus lhe tentou explicar enquanto ele caía, vertiginosamente, de encontro ao gume feroz das rochas, lá muito embaixo, o problema é que colocara toda a sua fé no instrumento ao invés de a colocar no objectivo. O impacto foi devastador.

O Senhor Deus ficou desgostoso com o novo desaire. Levou muito tempo a recuperar-se. Por fim tentou de novo. Saiu-lhe, à quarta tentativa, um anjo alegre, até um pouco simplório, que gostava mais de cantar e de dançar, artes, aliás, que ele próprio havia inventado, do que de voar. Para voar não parecia possuir grande talento. Todavia, quando Deus lhe sugeriu que tirasse as asas e tentasse voar sem elas, usando para isso apenas o esforço da fé, ele apenas perguntou, atordoado:

"E é possível?"

Depois largou as asas, espreitou o fundo abismo, fechou os olhos, e imaginou que por dentro do seu corpo outras asas se desenrolavam e batiam. Foi com essas, um tanto torto, um outro tanto tonto, que se ergueu no céu.

Deus alegrou-se. Depois dele fez muitos outros anjos, legiões e legiões, mas poucos, muito poucos, foram capazes de imitar o número quatro. Diz-se que esse anjo sem asas se passeia entre os homens, como uma espécie de polícia à paisana. Um observador num campo de batalha. Uma testemunha incógnita. Provavelmente o anjo número dois é mais feliz.

Por: José Eduardo Agualusa in "Pública" em 29 de Maio de 2005